segunda-feira, 26 de maio de 2008



A Filologia Da Palavra Cuidado


"A palavra cuidado apresenta várias derivações, contudo sempre terá a idéia de preocupação e inquietação por alguém. A pessoa que tem cuidado, tem amor e preocupação por algo ou por alguém. Do contrário, não há cuidado, há des-cuido.É certo que cuidado possui duas significações básicas. A primeira, entendida como desvelo, ou seja, atenção para com o outro. A segunda, entendida como preocupação, pois a pessoa que cuida, preocupa-se e sente-se responsável pelo outro.Assim como Leonardo Boff, em Saber Cuidar, também Antoine de Saint-Exupéry, em O Pequeno Príncipe, lembra-nos da importância do cuidado a partir do ato de cativar. Ao se cativar alguém, ganha-se sua simpatia, sua estima, seu querer bem. Em contrapartida, essa palavra dá origem a outra, nada simpática: cativeiro, que significa prisão, escravidão, sofrimento. Dessa forma, faz-se mister re-ver e re-ler Saint-Exupéry:
"E foi então que apareceu a raposa:- Bom dia - disse a raposa.- Bom dia - respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.- Eu estou aqui - disse a voz -, debaixo da macieira...- Quem és tu? - perguntou o principezinho.- Tu és bonita...- Sou uma raposa - disse a raposa.- Vem brincar comigo - propôs o principezinho. - Estou tão triste...- Eu não posso brincar contigo - disse a raposa. - Não me cativaram ainda.- Ah! Desculpa - disse o principezinho. Após uma reflexão, acrescentou:- Que quer dizer "cativar"?(...)- Eu procuro amigos. Que quer dizer cativar?- É uma coisa muito esquecida - disse a raposa. - Significa "criar laços"...- Criar laços?- Exatamente - disse a raposa. - Tu não és ainda para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil garotos. Eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. Eu serei para ti única no mundo...(...)- A gente só conhece bem as coisas que cativou - disse a raposa. - Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!(...)- Os homens esqueceram essa verdade - disse a raposa. - Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...- Eu sou responsável pela minha rosa... - repetiu o principezinho, a fim de se lembrar." É importante ressaltar que o cuidado, como disse Boff, faz parte da vida do homem, uma vez que ele nunca deixará de amar e de se preocupar com alguém. Será isso verdade hoje? Os homens amam e preocupam-se com o mundo e com eles mesmos? Para respondermos esses questionamentos, é preciso lançar um olhar crítico às relações interpessoais no mundo.Não podemos deixar de lembrar, antes de tudo, que alguns estudiosos derivam cuidado do latim coera, isto é, cura, sendo usado para traduzir relações de amor e de amizade que inspiram desvelo e preocupação com o objeto de carinho. Então, para analisarmos se há cuidado-cura, atualmente, é preciso entender todas as significações desse vocábulo: CUIDADO." (Cintia Barreto)

sábado, 10 de maio de 2008

Trabalhar para o outro: uma saída para a emancipação humana


Vivemos na sociedade do trabalho. Todas as formas de vivência social humana incluem-no e, da infância à velhice, vivemos de operar tudo o que pensamos pela atividade criativa das nossas mãos. Sendo assim, não conseguimos imaginar o viver sem algum tipo de atividade. Tipicamente moderna, a separação conceitual entre trabalho e lazer é fruto da perda do sentido profundo do seu significado para o desenvolvimento da mente e do espírito humano.
Hoje, somos obrigados a trabalhar apenas para sobreviver, vinculamo-nos com os nossos empregos na luta pela garantia da subsistência imediata e poucos de nós sentem, no cotidiano, a realização plena de suas potencialidades por meio do trabalho. Na medida em que o trabalho transformou-se em mero emprego e, portanto, em uma mercadoria como outra qualquer, distanciamo-nos da possibilidade de tê-lo profundamente vinculado ao nosso ser interno.
A nossa relação com ele passou a ser medida apenas pela quantidade de dinheiro obtida ao início de cada mês, o salário. Daí, a dificuldade vivida por muitos de nós às segundas-feiras e a ansiedade brutal pelo descanso dos fins de semana. Trabalhar passou a significar, para boa parte das pessoas, cansaço, aborrecimento e pressão. Não é demais lembrar a já velha exploração comercial feita pela propaganda da cerveja, com os “amigos sertanejos” cantando a plenos pulmões: “Hoje é sexta-feira...”
A modernidade conquistou e legou muitos benefícios materiais com a massificação da atividade produtiva humana, mas a distribuição de tanta riqueza acumulada continua extremamente injusta em todo o mundo. Por outro lado, a revolução tecnológica prometeu o paraíso: a diminuição do tempo de trabalho e o aumento correspondente do tempo livre para que pudéssemos dedicá-lo à arte, ao lazer, à cultura e a nós mesmos. Nada disso aconteceu e, nos dias de hoje, além de trabalhar como nunca em sua história, a humanidade vive perplexa diante do que os economistas chamam, com certa naturalidade conceitual, de desemprego estrutural. Um erro humano essencial continua pairando no ar, ou, como diz o poeta, “...alguma coisa está fora da nova ordem mundial”. Poucos se realizam pelo trabalho e muitos se perdem na labuta diária de seus empregos e subempregos.
Precisamos retomar o sentido profundo do trabalho humano, de modo a emancipá-lo da sua função meramente econômica, resgatando, assim, o seu sentido de realização para o nosso espírito. Talvez seja esta a grande questão humana deste início de século: trabalhar com o outro, pelo outro e, ao mesmo tempo, manter com dignidade a vida material.
Nesse sentido, alguns sinais começam a aparecer no horizonte humano, à medida que parece crescer o número de pessoas que buscam soluções para humanizar novamente a atividade do trabalho. Saber que se pode contar com o outro para transformar a natureza em utilidade social e, simultaneamente, não ter a coragem de explorá-lo, parece utopia, mas, ou a realizamos, ou estaremos fadados todos – patrões, empregados, parceiros e companheiros – ao eterno sono enfastiado que sentimos nas segundas-feiras urbanas do mundo pós-moderno.
Por isso, não basta percebermos que precisamos gostar apenas do “nosso” trabalho individual, é necessário que criemos condições sociais para que todos possam trabalhar pelo prazer de realizar para si e para os outros. Descobrimos a sociedade do “ter” e nela nos sentimos muito sós, a partir disso precisamos redescobrir a sociedade do “ser”. E ser só é possível se for para o outro, com o outro!
O filósofo Hegel considerou que há uma relação de troca mútua entre o homem e a natureza. Marx avançou em relação a essa idéia: para ele, quando o homem altera a natureza, ele mesmo também se altera. Ou seja, quando o homem trabalha, ele interfere na natureza e deixa nela suas marcas, mas, no processo de trabalho, também a natureza interfere no homem e deixa marcas em sua consciência. Ambos perceberam que não temos saída: é necessário resgatar o prazer diário no trabalho emancipado, que não pode ser mais deleite de alguns – os chamados descolados –, devendo estar disponível a todos. Neste aspecto, Steiner demonstra razão quando fala sobre o trabalho comunitário. A seu ver, “...para que alguém trabalhe para outro, é necessário que encontre nesse outro o motivo para o seu trabalho; e, da mesma forma, é necessário que aquele que deve trabalhar para um grupo de pessoas também reconheça o valor, o ser e o significado desse grupo”.
Talvez aí esteja uma das saídas para a emancipação humana: trabalhar não apenas para si ou para alguém que o explora, mas para todos. Descobrir no outro a razão do seu e do crescimento coletivo humano. Perceber com clareza que a liberdade tem duas dimensões, a individual e a social, e que, uma sem a outra significa a continuidade, como pensou Michel Foucault, da imensa prisão que criamos para nós mesmos.
In: FERREIRA, Delson. Manual de Sociologia: dos clássicos à sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2001, p. 144-145.
Delson Ferreira
Professor de Antropologia das Faculdades COC