sábado, 10 de maio de 2008

Trabalhar para o outro: uma saída para a emancipação humana


Vivemos na sociedade do trabalho. Todas as formas de vivência social humana incluem-no e, da infância à velhice, vivemos de operar tudo o que pensamos pela atividade criativa das nossas mãos. Sendo assim, não conseguimos imaginar o viver sem algum tipo de atividade. Tipicamente moderna, a separação conceitual entre trabalho e lazer é fruto da perda do sentido profundo do seu significado para o desenvolvimento da mente e do espírito humano.
Hoje, somos obrigados a trabalhar apenas para sobreviver, vinculamo-nos com os nossos empregos na luta pela garantia da subsistência imediata e poucos de nós sentem, no cotidiano, a realização plena de suas potencialidades por meio do trabalho. Na medida em que o trabalho transformou-se em mero emprego e, portanto, em uma mercadoria como outra qualquer, distanciamo-nos da possibilidade de tê-lo profundamente vinculado ao nosso ser interno.
A nossa relação com ele passou a ser medida apenas pela quantidade de dinheiro obtida ao início de cada mês, o salário. Daí, a dificuldade vivida por muitos de nós às segundas-feiras e a ansiedade brutal pelo descanso dos fins de semana. Trabalhar passou a significar, para boa parte das pessoas, cansaço, aborrecimento e pressão. Não é demais lembrar a já velha exploração comercial feita pela propaganda da cerveja, com os “amigos sertanejos” cantando a plenos pulmões: “Hoje é sexta-feira...”
A modernidade conquistou e legou muitos benefícios materiais com a massificação da atividade produtiva humana, mas a distribuição de tanta riqueza acumulada continua extremamente injusta em todo o mundo. Por outro lado, a revolução tecnológica prometeu o paraíso: a diminuição do tempo de trabalho e o aumento correspondente do tempo livre para que pudéssemos dedicá-lo à arte, ao lazer, à cultura e a nós mesmos. Nada disso aconteceu e, nos dias de hoje, além de trabalhar como nunca em sua história, a humanidade vive perplexa diante do que os economistas chamam, com certa naturalidade conceitual, de desemprego estrutural. Um erro humano essencial continua pairando no ar, ou, como diz o poeta, “...alguma coisa está fora da nova ordem mundial”. Poucos se realizam pelo trabalho e muitos se perdem na labuta diária de seus empregos e subempregos.
Precisamos retomar o sentido profundo do trabalho humano, de modo a emancipá-lo da sua função meramente econômica, resgatando, assim, o seu sentido de realização para o nosso espírito. Talvez seja esta a grande questão humana deste início de século: trabalhar com o outro, pelo outro e, ao mesmo tempo, manter com dignidade a vida material.
Nesse sentido, alguns sinais começam a aparecer no horizonte humano, à medida que parece crescer o número de pessoas que buscam soluções para humanizar novamente a atividade do trabalho. Saber que se pode contar com o outro para transformar a natureza em utilidade social e, simultaneamente, não ter a coragem de explorá-lo, parece utopia, mas, ou a realizamos, ou estaremos fadados todos – patrões, empregados, parceiros e companheiros – ao eterno sono enfastiado que sentimos nas segundas-feiras urbanas do mundo pós-moderno.
Por isso, não basta percebermos que precisamos gostar apenas do “nosso” trabalho individual, é necessário que criemos condições sociais para que todos possam trabalhar pelo prazer de realizar para si e para os outros. Descobrimos a sociedade do “ter” e nela nos sentimos muito sós, a partir disso precisamos redescobrir a sociedade do “ser”. E ser só é possível se for para o outro, com o outro!
O filósofo Hegel considerou que há uma relação de troca mútua entre o homem e a natureza. Marx avançou em relação a essa idéia: para ele, quando o homem altera a natureza, ele mesmo também se altera. Ou seja, quando o homem trabalha, ele interfere na natureza e deixa nela suas marcas, mas, no processo de trabalho, também a natureza interfere no homem e deixa marcas em sua consciência. Ambos perceberam que não temos saída: é necessário resgatar o prazer diário no trabalho emancipado, que não pode ser mais deleite de alguns – os chamados descolados –, devendo estar disponível a todos. Neste aspecto, Steiner demonstra razão quando fala sobre o trabalho comunitário. A seu ver, “...para que alguém trabalhe para outro, é necessário que encontre nesse outro o motivo para o seu trabalho; e, da mesma forma, é necessário que aquele que deve trabalhar para um grupo de pessoas também reconheça o valor, o ser e o significado desse grupo”.
Talvez aí esteja uma das saídas para a emancipação humana: trabalhar não apenas para si ou para alguém que o explora, mas para todos. Descobrir no outro a razão do seu e do crescimento coletivo humano. Perceber com clareza que a liberdade tem duas dimensões, a individual e a social, e que, uma sem a outra significa a continuidade, como pensou Michel Foucault, da imensa prisão que criamos para nós mesmos.
In: FERREIRA, Delson. Manual de Sociologia: dos clássicos à sociedade da informação. São Paulo: Atlas, 2001, p. 144-145.
Delson Ferreira
Professor de Antropologia das Faculdades COC